A Corrida
Luísa Abreu
May, 23 - Aug, 1 2020
"Há muito muito tempo, existia um lugar onde ainda não tinham sido inventadas as linhas.
Por essa razão, as pessoas que viviam nesse lugar eram simultaneamente felizes e infelizes; estavam constantemente num estado de ansiedade contraditória. Ora destroçadas pela incapacidade de se definirem, e regularem, ora exaltadas e vibrantes e celebratóriaspor serem a mais bela imagem da unidade primordial, a osmose completa.
Aparte toda a ansiedade, de que me abstenho de aprofundar, o que nos interessa neste pequeno conto ou evocação é a incapacidade que estas pessoas tinham em brincar.
Brincar, ou jogar, significa em traços largos (traço era também uma palavra inexistente neste lugar antigo) ressignificar as linhas, e tornar distintas mas também cinzentas as regras; opções, comando, controlo. As pessoas sem linhas não brincavam porque a distância entre dentro ou fora não existia, assim como a distância entre uma pessoa e outra pessoa. Não sabiam brincar, pronto. Não tinham condições reunidas para que se brincasse. Para que se fizessem brincadeiras e jogos.
A tristeza era um dos estados generalizados (também ela não tinha limites e se juntava a outros estados), porque embora estas pessoas não tivessem nunca brincado, sentiam-lhe a falta.
Talvez não estejamos longe de compreender este lugar de angústia mas em diferentes direcções.
1+2 = A CORRIDA
A Luísa, insubordinada, também decidiu que jamais deixaria de habitar esse tempo de cacofonias intermináveis, a partir de onde se é criança. A sua estratégia, pelo que posso verificar, foi inventar as linhas para o mundo de onde elas tinham desaparecido ou nunca entrado. (Ninguém me contou e posso estar errada, mas uma vez conhecido o conto acima, não hesitei nesta compreensão.) E a partir daí poder brincar novamente, ou melhor, brincar primeiramente, recobrindo a significação dos significados (é melosa esta frase, para ficar colada na boca) que por cá - no nosso lugar - existem; o que é uma rede, o que está fora, quem é o Bacon, a distância e complementaridade entre as cores. Quem vê de fora, e há muito deixou de ser criança, poderá fazer perguntas idiotas - e isto, porque a insolência não existe nesta nesta linguagem horizontalizada - olhando para esta obra, ou poderá deixar-se escorregar para dentro da brincadeira e arriscar saltar as linhas, segmentos, planos, despido do seu <raciocínio paradigmático> (li esta diferenciação num livro que me divertiu muito, O Animal Social) e arriscar cair - AAAAAAHHHHHH - no <modo narrativo>, que ao que consta é mítico, tem uma dimensão que foge ao pensamento paradigmático e que se prende com alguma coisa próxima da ética, ou da linha que a separa da moral - a distinção entre bem, mal; sagrado, profano - existindo com uma muito maior compreensão emocional e capacidade narrativa (eu acrescentaria mesmo, literária). Deixo apenas o final de uma descrição de uma brincadeira, presente no mesmo livro, porque acho óptima, e nos serve o caminho:
"Os rapazes reagiram aos invasores com alarme e medo. Lutaram sobre o tapete e alinharam os cavalos contra os invasores, mas gritavam uns para os outros: <Eles são muitos!> Tudo parecia perdido. Mas Harold inventou um cavalo branco gigante, dez vezes maior do que os brinquedos com que brincavam. <Quem é este?>, gritou ele, e respondeu à sua própria pergunta: <É o Cavalo Branco!> Que investiu contra os invasores. Dois outros rapazes mudaram de equipa e começaram a atirar invasores contra o Cavalo Branco. Uma batalha apocalíptica. O Cavalo esmagou os invasores, mas os invasores feriram o Cavalo. Os invasores estavam quase todos mortos, mas o Cavalo também estava a morrer. Então, taparam-no, fizeram-lhe o funeral e a alma do Cavalo subiu ao céu."
Ao Cavalo da Luísa, que veio jogar todos os jogos e salvar-nos de um tédio existencial e de um aborrecimento da continuidade (seremos o Rei deste Cavalo?) - e quem sabe o que fará numa próxima exposição - tive vontade de escrever uma dedicatória, em formato de versos, com a qual me despeço."
Excerto do texto "Play Play Play", de Catarina Real